Cirurgião britânico David Nott posa para foto

Conheça a história do médico David Nott, que viaja por regiões de conflito para ensinar profissionais de saúde a salvarem vidas

O que a paixão pelo hobby de construir aeromodelos tem a ver com vidas sendo salvas ao redor do mundo? 

A princípio não muito, você deve estar pensando. Mas a verdade é que essas duas coisas têm muita relação. Pelo menos para um homem. O médico galês David Nott.

Ele atua cotidianamente como Cirurgião Vascular e Geral em hospitais de Londres, na Inglaterra. Seu status como consultor permite que ele tire uma licença não remunerada todos os anos com o intuito de ajudar agências como a Cruz Vermelha Internacional e Médicos Sem Fronteiras. 

O cenário é que muda um pouco. Ficam de lado os bem equipados centros cirúrgicos britânicos e entram hospitais, espaços de treinamento e até mesmo salas de jantar em zonas de conflito. 

Em seu livro War Doctor: surgery in the front line (em tradução livre “Médico de Guerra: cirurgia na linha de frente”) ainda inédito no Brasil, Nott relembra como a paixão com montar aviões de plástico, algo fomentado nele por seu avô, pode ter influenciado suas habilidades.

“Eu amava fazê-los, pintando cada componente, deixando-os secar e colando na próxima peça. Eu imagino que esse foi um dos primeiros exemplos da destreza manual que me serviu tão bem quando adulto”, recorda o cirurgião, que precisava de muita paciência e dedicação para as peças complicadas.

Guerra na Ucrânia

Em fevereiro, os olhos do mundo se viraram mais uma vez a um novo conflito armado. Dessa vez, a Rússia invadiu a Ucrânia, originando uma guerra que se estende até hoje.

Desde o começo, muitas pessoas buscavam deixar a região, sendo recebidos em vários outros países, como foi o caso do Brasil. Houveram, porém, aqueles que propositadamente foram até o local conflituoso. Apesar de soar como loucura para a imensa maioria do mundo, o objetivo era nobre: ajudar. Esse também foi o caso de Nott.

A primeira viagem foi em abril. “Eu comecei inicialmente em um hospital. Quando eles souberam o que eu poderia fazer, me pediram para ir a mais hospitais, e a partir daí começou a crescer como uma bola de neve”, conta o cirurgião, que tratou feridos com lesões nas pernas, braços, ombros e feridas de fragmentação de bombas.

Ao mesmo tempo que auxilia os pacientes que já sofreram ferimentos, Nott também ajuda a salvar as vidas dos que ainda vão se machucar. Isso porque cada operação é acompanhada por médicos locais. O intuito é ensiná-los a se preparar e ter condições de operar com os recursos disponíveis.

“Eu passei a minha primeira semana só operando e operando, fazendo o máximo que podia. Em determinado momento, eu tinha umas 14 ou 15 pessoas em uma sala de cirurgia, todos debruçados, olhando o que eu estava fazendo. É uma ótima maneira de ensinar. Eu me afastei e disse a eles onde fazer as incisões”, recorda. Na oportunidade, Nott viajou por toda a Ucrânia, passando por regiões que haviam sido bombardeadas.

Cirurgia por Skype

Mesmo depois de ter voltado a Inglaterra, continuou o trabalho de auxiliar médicos que estavam na guerra. Foi o caso de Oleksander, que havia participado de uma das aulas presenciais uma semana antes.

“Ele me viu reparar um ferimento bem grave de perna na Ucrânia e assistiu os treinamentos em vídeo que fizemos lá. Mas agora Oleksander era um cirurgião-chefe e estava diante de uma lesão semelhante”, explica Nott. Assim, com auxílio do Skype, um programa de videochamadas, ele guiou o aluno durante uma cirurgia.

Na ação, o médico ucraniano foi orientado em como utilizar um pedaço de pele da região de trás do joelho para reparar e fechar a ferida em outra parte da perna. A causa do problema que levou aquele paciente à mesa de cirurgia foi uma explosão.

O processo, apesar de não ser comum, teve êxito. “Eu estava bem nervoso, mas tudo correu bem graças ao David Nott. Ele nos mostrou como médicos comuns podem lutar na linha de frente”, comentou Oleksander ao site da fundação David Nott.

 Segunda viagem à Ucrânia

Durante a passagem de abril ficou claro que haveria a necessidade de retornar ao país do leste europeu. Assim, David Nott foi mais uma vez em direção a guerra, dessa vez acompanhado pelos cirurgiões Pete Mathew e Ammar Darwis.

David Nott, ao centro, conduz um treinamento com médicos locais durante a segunda passagem pela Ucrânia em 2022
David Nott, ao centro, conduz um treinamento com médicos locais durante a segunda passagem pela Ucrânia em 2022 – Foto: David Nott Foundation.

A equipe já trabalhou junta em várias zonas de conflito na última década. Os companheiros nessa nova jornada também fazem parte do corpo médico que ajuda a Fundação David Nott a realizar seus treinamentos (Veja mais sobre a fundação no Box).

Foram dois períodos intensivos de 3 dias de trabalhos nas cidades de Dnipro e Kharkiv. Cerca de 60 profissionais foram instruídos. A viagem foi realizada com apoio da UOSSM (Union of Medical Care and Relief Organizations, ou União de Organizações de Assistência Médica e Socorro, em tradução livre), uma coalizão de ONGs da área de saúde e apoio humanitário.

“Juntos, partimos da Polônia e chegamos ao nosso primeiro destino de treinamento, que parecia ser uma instalação de ensino em Dnipro. Nas paredes, havia fotos de estudantes felizes e sorridentes, uma diferença gritante para a realidade atual da Ucrânia”, comenta Pete Mathew, ao recordar da viagem.

Como tudo começou

Um pouso rápido e turbulento, sair correndo do avião e pegar carona em um veículo blindado, para então trabalhar em um hospital que havia ficado conhecido como “Queijo Suíço”, pela quantidade de buracos que havia na edificação.  É assim que começa a jornada de David Nott em sua primeira missão.

O ano era 1993 e uma guerra civil tomava conta da região onde era a antiga Iugoslávia. Após se voluntariar no Médicos Sem Fronteiras, o MSF, David chegou a Sarajevo, hoje capital da Bósnia. Em seu livro, ele conta o que aconteceu quando o hospital foi atingido por uma bomba durante uma operação.

“O prédio inteiro tremeu, eu podia sentir meus pés escorregarem no piso de ladrilhos que estava escorregadio de sangue, e instantaneamente tive o pensamento que a estrutura poderia desmoronar. E então, de repente, segundos depois do impacto, tudo ficou escuro”, narra.

Com o fornecimento de energia desligado, os aquecedores não funcionavam e a temperatura na sala de cirurgia caía drasticamente no inverno europeu, o que era potencialmente mortal para o paciente. 

Nesse meio tempo, sem conseguir enxergar seus colegas, Nott os chamava, mas não obtia resposta. O encarregado por trazer lamparinas e ligar os geradores auxiliares em casos de queda de energia também não chegou. O cirurgião sentia o paciente perder cada vez mais sangue.

“Chamei a enfermeira e a assistente, mas minha voz ecoou na escuridão. A única coisa que eu podia sentir era a maré de umidade enquanto o sangue do rapaz deixava seu corpo. Eu podia sentir sua vida se esvaindo”, continua a narrativa de Nott. “Alguns minutos depois, as luzes começaram a piscar e depois voltaram. Minha equipe de operação tinha fugido para se proteger”.

Iniciação

Esse foi o primeiro paciente que ele perdera em uma missão, algo que chamou depois de uma iniciação. O fato, também narrado em seu livro, o fez se sentir apenas como uma pequena engrenagem no maquinário da guerra.

A Bósnia foi a primeira parada, em uma jornada de quase 30 anos que passou por:

  • Afeganistão;
  • Serra Leoa;
  • Libéria;
  • Costa do Marfim;
  • Chade;
  • Darfur;
  • Iêmen;
  • República Democrática do Congo;
  • Haiti;
  • Iraque;
  • Paquistão;
  • Líbia;
  • Síria;
  • República Centro-Africana;
  • Gaza;
  • Nepal.

Fundação David Nott

A organização de caridade foi fundada em 2015 pelo médico e sua esposa, Elly Nott. A missão é promover os melhores treinamentos disponíveis para profissionais da saúde que atuam em regiões em conflito. O objetivo é ajudá-los a salvar o maior número de vidas possíveis.

Essa foi uma maneira de melhor organizar as ações de David Nott. Com isso, surgiu o HEST (Hostile Environment Surgical Training, ou Treinamento Cirúrgico em Ambientes Hostis, em tradução livre). “Eu comecei a fundação para oferecer a cirurgiões e médicos as habilidades que eles necessitam para promover socorro em zonas de conflito e desastres naturais ao redor do mundo”, afirma o fundador.

As instruções são oferecidas in loco, tendo ocorrido em países como Síria, Turquia, Iêmen, Palestina, Iraque, Líbia e Líbano. Além disso, a Fundação David Nott também recebe médicos no Reino Unido, nesses casos eles providenciam todos os custos com a viagem e acomodações. Os trabalhos são mantidos com doações e vendas de cartões comemorativos.

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