As crianças na pandemia são menos atingidas pela infecção pelo novo coronavírus, mas estão mais suscetíveis aos efeitos indiretos
Os desdobramentos da crise sanitária gerada pelo novo coronavírus para o público infantil são inúmeros. Entre os problemas observados estão:
- Falta de atendimento satisfatório e o cumprimento de situações importantes para a saúde da população infanto juvenil;
- Muitas crianças deixaram de ter acesso ao Programa Nacional de Imunização (PNI);
- Maior exposição a violência doméstica.
A Mais Saúde conversou sobre esse tema com Lívia Almeida de Menezes. Ela é médica pediatra e infectologista pediátrica. Atualmente é Coordenadora de Atenção à Saúde do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz).
Mais Saúde: Quais seriam os efeitos indiretos da Covid-19 sobre as crianças?
Lívia: Os efeitos indiretos — ou o lado oculto da pandemia — são consequência da diminuição ou eliminação do cuidado (aqui defendido no sentido mais amplo da palavra) para com essa parte da população. As crianças e adolescentes foram afastados do ambiente escolar de forma abrupta e prolongada com alto impacto na socialização, na aprendizagem e, para muitos, na segurança alimentar.
Uma parcela considerável deles está submetida, em tempo prolongado, a tecnologias imaturas e inclusive perigosas, porque os riscos de não se fazer nada são ainda maiores. Tornaram-se sedentários em sua maioria, privados de uma convivência familiar e social mais ampliada com sérios prejuízos à saúde mental em graus variáveis de ansiedade e depressão.
Há estudos demonstrando o aumento do índice de suicídio na adolescência, e outros tantos evidenciando o aumento da violência doméstica para com crianças e adolescentes, forçados a permanecer mais tempo com seus agressores.
Outras fontes revelam a redução do acesso à saúde, em especial ao Programa Nacional de Imunização (PNI) com a consequente reintrodução de doenças preveníveis nesse cenário desastroso.
Mais Saúde: O que você considera que deve receber mais atenção quando o assunto é o atendimento a crianças na pandemia? os problemas Diretos, ou indiretos?
Lívia: Trata-se de uma pergunta difícil de ser respondida, sobretudo, em nosso país. Se admitirmos que os efeitos indiretos são sobrepujantes nesse cenário da saúde infantil, podemos não dar o devido valor aos efeitos diretos da Covid-19 que são absolutamente impactantes, especialmente quando comparamos o número oficial de óbitos de crianças e de adolescentes por essa doença no Brasil com certos países.
Embora não seja tão devastador quanto nos idosos, pois as crianças respondem por aproximadamente 2,5% dos casos graves hospitalizados apenas, e 0,7% dos óbitos em nosso país, o efeito direto da Covid-19 pode ser medido, dentre outros índices, pelo número absoluto de óbitos pelo SARS-CoV-2: aproximadamente 2000 crianças e adolescentes morreram desde o início da pandemia no Brasil.
Nos EUA, em comparação, foram 322 óbitos de crianças na pandemia, o que corresponde a 0,06% dos óbitos daquele país; ou seja, a Covid-19 mata muita criança no Brasil e provavelmente isso não se dá pura e simplesmente por uma suposta virulência de nossa cepa, mas sobretudo pelo acesso inadequado aos serviços de saúde, dentre outras questões.
Portanto, creio que os profissionais de saúde que atuam com esse público devem ter seu radar ampliado para ambos os efeitos da pandemia, indistintamente.
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Mais Saúde: Na sua concepção, o atendimento as crianças na pandemia não tem sido satisfatório?
Lívia: Diante da complexidade que foi apresentada até aqui, e enquanto mãe e pediatra, não posso admitir que esse público tenha recebido atenção satisfatória ao longo da pandemia.
É verdade que isso acontece não somente com as crianças e os adolescentes, mas sobretudo com o restante da população, na medida em que acompanhamos diariamente, por meio de órgãos oficiais do Ministério da Saúde e da mídia, o sempre elevadíssimo número de óbitos e de casos novos por Covid-19.
O impacto de uma pandemia desenfreada reverbera em todas as faixas etárias, ninguém foi aliviado tampouco as crianças e os adolescentes, que rotineiramente são negligenciados na medida em que foram considerados até aqui como “poupados” pelo vírus.
Mais Saúde: O que você sugere para melhorar a maneira como profissionais da saúde atendem crianças na pandemia?
Lívia: Diante de tal cenário, o fortalecimento da capacidade de atenção à saúde da criança e adolescente no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) deve ser prioridade em todo o país.
Esse esforço deve estar articulado a ações intersetoriais com outras políticas de proteção social. Alguns pontos merecem destaque: a divulgação e análise dos dados sobre síndromes gripais em crianças e adolescentes; ampla disseminação de conhecimento sobre o manejo clínico da Covid-19 e suas complicações em crianças e adolescentes; estratégias de qualificação profissional para a assistência de urgência e hospitalar a crianças com síndromes respiratórias graves e síndromes inflamatórias multissistêmicas; além de medidas intersetoriais com as políticas de Educação, Assistência Social, Cultura e Esportes.
Mais Saúde: Esse tipo de atendimento visaria os efeitos diretos e indiretos?
Lívia: Sim. Advogamos que a avaliação dos impactos da Covid-19 sobre a saúde das crianças e dos adolescentes brasileiros deva se dar com a perspectiva ampliada de saúde e não somente pela ausência dessa doença ou ainda de qualquer outra enfermidade. E que o curso da pandemia em nosso país pode ser responsável por elevado risco de mortalidade, bem diferente do que ocorreu com essa faixa etária em locais como a Europa e a América do Norte.
Reduzir esse risco é tarefa urgente de gestores e profissionais de saúde, e requer medidas amplas de planejamento e organização dos serviços no sentido de garantir o fortalecimento da atenção à saúde da criança e do adolescente e de dirimir as desigualdades socioeconômicas que perpassam o campo da saúde.
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